Terapia afirmativa: por que uma escuta de uma LGBT para LGBTs?

Quando eu comecei a me enveredar pelo mundo do atendimento online tornou-se uma urgência aprender a me divulgar profissionalmente. Alguns dos conceitos altamente veiculados na época eram as ideias de nicho e persona. Ou seja, entender que eu não poderia fazer uma divulgação atirando para todos os lados e para todos os públicos. Era necessário filtrar a atração de demandas. Isso gerou várias mobilizações internas no sentido de pensar que tipo de público e de demanda mais me impulsionavam a me sentir realizada como psicóloga.

Falar para e com LGBTs sobre autoestima, mobilizando nossas trajetórias de autoconhecimento e autocuidado me exigiu revisitar várias vezes a PHC trazendo para ela uma roupagem mais próxima de públicos leigos, como também até hoje me bota muito pra pensar no fazer a psicoterapia.

Não era pra ser um diferencial construir uma clínica afirmativa. Pelo Código de Ética da psicologia era para tode profissional ter competência teórica, metodológica, técnica e compromisso ético de exercer a profissão sem discriminação.

Mas, tanto por razões de intolerâncias existirem em todas as profissões como pela falta de arcabouço na formação para lidar com a diversidade de demandas eu me vi há alguns anos atrás me qualificando para um atendimento dos meus. Todos os dias pensando naquilo que a Nassim do passado precisaria e o que dentro dos alcances da psicologia podemos promover de segurança, qualidade de vida, saúde mental e bem-estar para as LGBTs.

Vou compartilhar com vocês algumas das coisas que tenho aprendido nessa trajetória. Do porque pensar em psicoterapia para minorias é fundamental, e longe de ser um diferencial de mercado, algo que tinha que ser premissa de todas das sociabilidades dentro ou fora da terapia.

 

1- Colocar os pingos nos I’s não é frescura

Demarcar que existem minorias é dar nome a diferentes existências. Sabemos que no dia a dia o não colocar na mesa o gênero, a sexualidade, as questões raciais e étnicas são infelizmente brechas para a hetero-cis-normatividade e para a hegemonia da branquitude serem os carros-chefe das relações.

Quantas vezes estamos em lugares sopesando se podemos realmente nos soltar, confiar e sermos nós mesmes? Afinal não está escrito na testa de ninguém a intolerância.

A cultura de perguntar pronomes, não pressupor a identidade de gênero de alguém e sua orientação sexual, não pressupor a branquitude onde ainda há de se desenvolver consciência de ser uma pessoa racializada, etc,  são na relação terapêutica e nas relações da vida as premissas para abrir espaço para construir relações diferentes. Ou seja, para descobrir  que existe espaço para não ser aquilo que sempre foi esperado de si.

 

2- Todas as relações formam o nosso psiquismo e as opressões não fogem disso

Entendemos na Psicologia Histórico-Cultural que os motivos (porquês) e fins (para ques) das nossas atividades engendram e são transformados pelo desenvolvimento de consciência. Motivos e fins não são inatos, eles são desenvolvidos, extraídos e transformados.

Entender eventuais conflitos entre eles é de grande valia na Psicoterapia Histórico-Cultural para traçarmos hipóteses e planos de intervenção conjuntamente.

Por exemplo: Desejo me sentir amade e pertencente, mas não desejo em certas situações ter relação sexual, deixar de vestir certas roupas, andar ou deixar de andar com certas pessoas. Quero receber o amor de alguém mas tudo o que faço vai na contramão no sentido de exaltação de mim mesma.

Outro exemplo. Sou uma pessoa racializada e quero me encaixar num grupo de pessoas brancas, e com isso me vejo forçada à conivência de piadas sobre meu próprio povo, acato estereótipos sobre mim etc.

Outro: Quero ser aceite e ter segurança na minha família, trabalho, grupo de amigos mas não saio do armário porque isso pode custar toda essa suposta segurança.

Enfim, tudo aquilo que visa o que busco acaba mais me afastando de onde queria estar, colocando em questionamento o meu desejar e a minha existência. Relações em que o eu existe em torno de um outro ideal nos leva a viver numa realidade com todas as suas contradições, mas ainda não ter recursos para existir com saúde mental e bem-estar.

Não olhar a realidade que abarca relações de poder e de opressões estruturais pode nos levar a tomar os conflitos internos como pontuais e de responsabilidade de resolução individual, o que incorre no risco de aumentar ainda mais a vulnerabilidade e o sofrimento.

 

3- A psicoterapia não é para mascarar a dureza a vida mas conviver e lutar contra ela

Quantas vezes ao se abrir com alguém sobre dores se sentir solidão afetiva, ouvir comentários maldosos podemos ter do outro lado uma recepção como “você tem que pensar mais positivo”, “você é muito sensível e se agarra em coisas pequenas”, “você não pode ligar para o que pensam de você”.

Para nós psis não se trata de autorizar ou cancelar falas isoladas do contexto, mas entender o cenário de cada sujeito e a implicação em seu desenvolvimento de cada fala na relação.

Infelizmente sabemos que muitas minorias saem da terapia com ainda mais sensação de derrota, fatalismo, culpa pelas queixas que trazem relacionadas a opressões, estando conscientes delas ou não.

Muito disso se dá em função da gente criar na nossa cabeça a ideia de um sujeito médio. Ele é o parâmetro do que é sofrimento de verdade, dor de verdade e queixa de verdade. O sujeito médio tem gênero, raça e sexualidade: normalmente é um homem, branco, cis hétero. Homens brancos cis-heteros possuem obviamente os seus sofrimentos que devem ser acolhidos, todavia quando tomados como a média de referência impactam em um segunda violência contra minorias, que é a deslegitimação das especificadadades de sua existência, desejos e angústias nessa sociedade.

 

Enfim…

Na nossa sociedade vemos que vidas trans, racializadas e de mulheres são aquelas que as contradições vividas sob forma de sofrimentos são as mais gritantes. Não se faz uma psicoterapia inclusiva tendo o menos oprimido como média, mas quando se pensa num espaço que inclua quem é mais excluído ai sim temos um espaço que possa comportar um espectro maior de vidas.

Por fim, pensar numa terapia que acolha minorias é não perder de vista que essas vidas são muito mais do que minorias. Nem todo sofrimento de uma LGBT vai ser pelo fato de ser LGBT, e nem sempre essa será a demanda. Quando a for, que o espaço de escuta e acolhimento seja dado. E quando não for, que as LGBTs sejam livres para falar de angústias envolvendo diversos campos da vida sem serem reduzidas a um aspecto de toda sua identidade.

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