Ser LGBTQIAP+ num mundo regido pelo Patriarcado hetero-cis-normativo é se lembrar todos os dias que muitas coisas que passamos não deveriam acontecer se não houvesse o preconceito. E isso não foge da saúde mental.
Todas as pessoas estão suscetíveis a adoecer psiquicamente. Mas quando você adoece por conta da sua existência não ter legitimidade e te colocar em risco de uma vida segura e digna, ai o papo é outro.
Se de um lado para muitas LGBTQIAP+ cuidar da saúde mental passa por elaborar e entender a própria sexualidade e identidade de gênero num espaço seguro e acolhedor, por outro, para outras LGBTQIAP+ cuidar da saúde mental pode ser sobre ter também esse espaço seguro, mas para poder falar da vida de modo geral, sobre afetos, amizades, trabalho, família, cirses existenciais, etc, sem que todos os nossos problemas sejam reduzidos ao fato de ser LGBTQIAP+.
Pensar numa terapia afirmativa para LGBTQIAP+ é pensar na construção de um espaço que em que a gente possa ser inteire, sem precisar esconder nossas identidades, mas também não ser reduzide a ela.
Pensando nisso, abaixo apresento um compilado de algumas reflexões que acompanham a saúde mental de muitas LGBTQIAP+. Você pode ou não se identificar com elas e tudo bem, você não é menos LGBTQIAP+ se não se identificar e você é muito mais que cada uma dessas questões, caso se identifique!
Como saber a hora certa de sair do armário?
Sair do armário não é algo fácil. Envolve colocar muita coisa na balança. Como vão reagir? E se eu for humilhade? Violentade? Zombate? Expulse de casa? Rejeitade? Tenho para onde ir se for necessário ir embora? Para quem pedir ajuda? Como arcar com minha própria vida se sou dependente de alguém? Vou conseguir elaborar o abandono e a reação do outro?
A gente não deveria passar por tudo isso. É muito cruel e injusto ter que ponderar se rola ou não eu revelar quem sou de verdade. Mas se formos pensar, a própria ideia de sair do armário encerra uma injustiça tamanha. Ter que revelar que não se é o que a humanidade reproduz que é o normal e aceitável, desconsiderando tantas formas de ser e amar. Ter que lidar com a pressuposição de ser cis-hétero antes de se entender como sujeito já é uma violência.
Sair do armário é lindo e um direito de todes. Mas avaliar as condições reais de segurança e sobrevivência não podem ser deixado de lado. Não existe uma resposta certa do que fazer, pois cada caso encerra condições e recursos objetivos e subjetivos diferentes que devem ser analisados com cuidado. Você tem direito de sair do armário e ai desenvolver os recursos necessários pra lidar com eventuais consequências, bem como se não se sentir preparade pra sair hoje ou pra certas pessoas e não tem problema, você não será menos LGBTQIAP+!
Entender que o risco de inaceitação e violência pode existir e se preparar para lidar com isso é amar e valorizar a sua própria vida!!
Existe vida depois de sair do armário
Não raro, quando se sai do armário somos tomades por uma urgência de viver tudo o que não foi vivido durante todo o período que estivemos no armário.
E ai as reflexões vão longe: quem eu teria sido na infância e na adolescência se não tivesse sido colocade no armário? Com quem teria ficado na escola se pudesse? Quais roupas e estilos eu teria? Quem teriam sido meus amigos? Quem eu seria hoje?
A gente retoma o passado pra se organizar no presente e sonhar com um futuro. Pode ser muito doloroso constatar que todo o tempo no armário não vai voltar para a gente reavê-lo. Daí a tamanha violência sobre nossas vidas que vai além de falas e gestos pontuais, posto ter um impacto em toda a nossa história!
Isso não significa que a partir de então você não possa partir do vivido e ir desenvolvendo significações para o passado e para o hoje. A criança vyada encerrava a adulta em potencial que você se tornou e você sempre retomará a criança vyada em você a cada manifestação de seu orgulho hoje!
Posso ser POC e manter a minha religiosidade?
O processo de sair do armário passa por construir e perder muitos círculos de convivência. Infelizmente em alguns espaços religiosos a LGBTfobia é intensa, de modo que váries POCs decidem se afastar da religiosidade. Não cabe aqui pensar em termos morais, uma vez que a psicologia é laica!
Não tem nada de errado e não deve ser motivo de culpa você escolher se afastar de lugares que não te aceitem e a partir daí buscar novos espaços e construir recursos pra lidar com os aspectos que até então a sua antiga religiosidade ajudou a construir! Ou até a questionar esses constructos. Descrer e/ou negar algo é problema só seu!
Mas também não significa que você seja obrigade a se afastar e negar uma fé que seja importante para você em virtude de sua comunidade religiosa não aceitar LGBTQIAP+. Crer e praticar a fé que você escolheu é seu direito! Infelizmente , muitas LGBTQIAP+ sentem um desamparo para poderem expressar essas demandas quando presentes.
A gente tende a se afastar de espaços preconceituosos, o que é necessário e compreensível. Mas nessa, a gente acaba pressupondo que tais espaços pertencem à hetero-cis normatividade e vamos ficando com espaços e recursos cada vez mais restritos, já que a LGBTfobia está infelizmente em todos os lugares.
Lugar de POC é onde ela quiser! Inclusive em igrejas, mesquitas, terreiros, sinagogas, cultos, templos, assembleias religiosas etc! Esses lugares DEVEM nos aceitar e se não queremos ainda assim ocupá-los, mas preservar uma prática religiosa, há espaços em que é possível disputar presença sem colocar sua vida e bem-estar em risco, bem como muitas outras formas de praticar uma fé.
Orgulho passa também por praticar aquilo que você escolhe e crê!
Sobre fetichizar e ser fetichizade
Não raro minorias sexuais, de gênero e raciais se deparam com terem seus corpos fetichizados.
Quando vamos aprendendo que nossos corpos não são passíveis de desejo, a gente passa a aceitar tudo aquilo que pareça uma micro validação, e nisso há o risco de sermos ainda mais violades.
Ter fantasias sexuais específicas com certos corpos em certas condições passa por pensar nas determinações hegemônicas construidas sobre corpos minoritários que perpassam vários aspectos, inclusive o erotismo. Precisamos retomar como nossos desejos são construídos e quais desejos circunscrevem nossa vida afetivo-sexual em prol da humanização e da felicidade de todes envolvides nas relações!
Consentimento é tudo! Não coloque alguém em situações nas quais haja sinalização verbal e/ou não verbal de desconforto!
Nossos corpos não estão à serviço de fantasias ditadas pela branquitude, hetero-cis normatividade e patriarcado de desbravar, exotizar, submeter e objetificar.
Orgulho também passa por relacionar-se afetivo-sexualmente vendo a potencialidade de romper com muita violência desse mundão que não devemos aceitar, na busca de um prazer humanizante pra todes!
Sobre não se sentir LGBTQIAP+ o suficiente
Muitas LGBTQIAP+ relatam angústias no que tange quererem esconder o close vyado de heteros-cis pra se protegerem de eventual violência, mas também quererem dar pinta pra serem identificades pela comunidade. E ai entramos num dilema delicado…
Elementos das culturas LGBTQIAP+ são importantes no sentido de materializar posturas contra-hegemônicas à hetero-cis normatividade.
Todavia, não faz sentido ter um manual ou checklist pra saber se estou sendo viade/sapa/poc o suficiente. A lógica da provação e merecimento de pertença num rol de normativas é deles e não nossa! E eles mesmos não precisavam disso! Então por que reproduzir essa lógica limitante?
Amor por outre e expresão de realização e completude com nossa existência não se mede numa régua! Ser LGBTQIAP+ é simplesmente ser e não ser o suficiente pra merecer uma carteirinha!
Orgulho não é só ser LGBTQIAP+, mas sobre requalificar os significados do que é ser quem somos no mundo em que vivemos.
Bicha má, sapa dramática e outros estigmas
A gente tem no vale algumas terminologias próprias para identificar posturas que sinalizem algum nível de toxicidade. Tais termos têm um histórico e significado próprios, mas quando super disseminados acabam se perdendo, bem como incorrem no risco de serem artifícios de estigmatização fora do vale.
Ser uma bicha má não se reduz à maldade, mas tem um histórico em que a violência de fora requer reatividade do sujeito alvo de violência. Ser raivosa não é defeito, tampouco o que define alguém, mas um sentimento legítimo diante de um mundo tão injusto. Ser dramática é algo a ser pensado, até que ponto sou dramática ou estou colocando na mesa pensamentos e sentimentos que fui ensinade a silenciar numa sociedade que naturaliza o expressar e conversar sobre sentimentos como algo de gente frágil?
A gente tem que cuidar muito com a forma que nos identificamos e caracterizamos os atributos de manejos de cada um no vale.
Isso não significa que é tudo luz e cores. A gente leva para o vale resquícios e marcas de coisas que ficaram pendentes e que são os recursos que temos no momento. E não precisa continuar sendo assim. Não se trata de culpa, tampouco vergonha.
Cuidar dos modos de expressão, vocalização e construção de relações saudáveis sem se culpar pelos estigmas contra as LGBTQIAP+ é dever de TODES!
Falocentrismo e hegemonia GGG
Uma luta pelos direitos LGBTQIAP+ deve necessariamente entender que as LGBTQIAP+ fazem parte de grupos oprimidos no trabalho, na família, nos processos sociais e históricos de produzir e reproduzir a vida.
O processo de crescimento e disputa de espaço deve se dar para fora e para dentro de nossos próprios espaços. Quando vivemos num mundo que se vale da LGBTfobia, do racismo e do machismo, o processo de luta passa por romper a reprodução dessas opressões dentro de nossos próprios círculos. Em outras palavras, no próprio vale quem passa a ser hegemônico e mais passível de reconhecimento por fora são as gays cis, brancas, padrão de beleza, classe média-alta, etc.
Pinto não é coisa só de homem, mas a disseminação da apologia ao pinto restringe outros corpos e se vale de ideias de masculinidade hegemônica. Afinal, não se trata só da piroca, que quando exaltada, não é qualquer piroca de qualquer pessoa do vale. Algumas pirocas em foco favorecem a exaltação e orgulho de algumas POCs, e isso mais exclui do que inclui.
Você, gay cis padrão, não deve deixar de amar falos de jeito nenhum! Mas entenda que a cultura LGBTQIAP+ não se reduz a eles e se tudo aquilo que você exalta como LGBT/queer só gira em torno disso, seu arco-íris tem algo de errado, porque você não é o arco-íris sozinho.
LGBTfobia na terapia: como se proteger?
Muites LGBTQIAP+ ao passarem por tantas turbulências na vida buscam a terapia como lugar de escuta e aceitação. Só que a dor e o conflito aumentam ainda mais ao se deparar com um terapeuta LGBTfóbico.
Nós psicólogues temos orientações e diretrizes que explicitamente tomam o preconceito de gênero e sexualidade como violações gravíssimas, tanto via código de ética des psicólogue, como em inúmeros materiais que os sistemas de conselho de psicologia produzem.
E ainda assim tem psicólogues que não sabem o que é LGBTQIAP+ e não se preocupam em aprender sobre. Esse não é um desafio só da psicologia, mas de um mundo preconceituoso, cujo ódio e intolerância perpassa todas as esferas inclusive por aqui. Pacientes e profissionais LGBTQIAP+, temos que constantemente estarmos atentes aos riscos de violência e apagamento! Os conselhos regionais de psicologia (CRP) recebem denúncias de preconceito de profissionais da categoria e instituições, não só em relação às violações de sexualidade e gênero, como também de racismo! Você não precisa ser psicólogue pra fazer a denúncia e esta pode ser anônima! Procure a sede e/ou subsede de sua região em caso de necessidade ;)
Sigamos juntes para a resistir em prol de um novo mundo em que a diversidade de gênero e sexualidade seja verdadeiramente assimilada em todos lugares por TODES!