A vida de psicóloga clínica exige constantemente olharmos para assuntos da contemporaneidade que tocam nas dores e dificuldades das pessoas e quais os recursos que mobilizam elaborar essas dores e dificuldades.
Diante disso, me vi há um tempo atrás começando a assistir o reality show Casamento às Cegas, que muites pacientes insistiam para eu ver. Eu, trouxa, tentei me enganar de que iria assistir só pra fins profissionais, sendo orgulhosa de admitir que lá no fundo eu gosto de me entreter com o barraco também kkkkk. Enfim, devo um obrigada aos pacientes que insistiram pra eu ver.
Tudo começou com um reality
E não é que de fato a série (com toda a heretocisnormatividade, monogamia compulsória, gordofobia, machismo a torto e a direito etc imposto na maioria das relações) retrata de fato alguns pontos que confirmam o quanto as pessoas sofrem por quererem amar e serem amadas. Algo de errado com isso? Lógico que não. A questão é a que custo amar e ser amade, o que de fato é amor e o que de fato é interesse no outro ou uso do outro pra preencher algum buraco meu que nada tem a ver com esse outro.
Tocou ai? Segue comigo então!
O sonho de uma história de amor
A gente se esquece, mas em algum momento, ou conjunto de momentos, foi sendo criada uma fantasia sobre viver uma história de amor. E tá tudo certo. Termos sonhos, expectativas, fantasias e desejos é importante e o que nos torna humanos. O problema é não estamos cientes de que se trata de uma fantasia e nem sequer se permitir revisitar a fantasia pra que, de fato, a gente coloque na balança o que procede e não procede para entender como realizar o que desejamos estando ao lado de alguem(s).
Sem isso a gente torna natural uma série de opressões em torno do amor. Os fetiches não consentidos se tornam violência, uma vez que uma fantasia se impõe como critério de validar ou descartar pessoas pelo nosso interesse de muito mais ter alguém do que de construir uma relação dia a dia por um tempo de vida curto ou longo com alguém.
Em contrapartida, aquilo que deveria para cada um de nós ser inegociável se torna flexível em nome da urgência de ter alguém para não ser sozinhe. Esse medo é algo que nos vulnerabiliza demais, faz muites confundirem o querer estar com alguém com acreditar que você precisa desse alguém para viver.
Cair nessa lógica tem muito a ver com o fato de muitas vezes a gente não pensar o que deveria ser o amor. Se queremos viver uma história de amor, mas não nos colocamos em movimento diário de pensar o que é o amor que a gente deseja, a gente trata amor como consumo e não como sentimento que se extrai da construção de vivências. A gente não dá espaço pra conhecer o outro em suas minúcias e fica muito mais preocupade em se encaixar no molde que a pessoa criou para a gente ou encaixar outre no molde que criamos para a pessoa.
Não deseje que eu seja tudo na sua vida
Quando o ter alguém a qualquer custo se torna uma prioridade, a gente deixa de falar de humanização e passa a falar muito mais de consumo e descarte de partes que queremos e não queremos ne outre. Não temos consciência do impacto do deixar entrar ou deixar alguém ir da nossa vida e na da outra pessoa.
Em quantas temporadas do reality a gente viu pessoas ficando com sua “segunda opção”, o que pode parecer um jeito de seguir em frente, mas ao mesmo tempo coloca a pessoa “escolhida, porque é o que tem pra hoje” num lugar de constante sensação de precisar se provar e aceitar um posto de segundo lugar que nem deveria existir e ainda se espera que a pessoa seja grata por ter sido escolhida? Complicado, né?
O quanto estar em uma relação que a outra pessoa nunca deu indício de que vai mudar e acolher suas demandas é de fato, mesmo sem ser haver culpa em questão, uma forma de se implicar com um relacionamento frágil e aparente pelo medo de decepcionar, medo de ficar sem nada e ninguém?
Se perder o outro é ficar sem nada, estamos inferindo que o outro é nosso tudo, o que é um peso que não cabe ser colocado em nenhuma pessoa, pois ao sermos o tudo de alguém estamos na iminência de frustrar expectativas, o que é inevitável, mas se torna causa de sofrimento quando nos implicamos com essa dinâmica desesperadamente esperando uma mudança que o outro nunca deu indício de entregar.
O que é amor para você?
Sendo assim, o título em inglês do reality “o amor é cego?” seria verdadeiro? Penso que sim, se estivermos compreendendo o amor como amar uma idealização que a gente fez do outro em vez do outro propriamente dito. Esse amor é cego de fato e mais prejudica do que nutre, uma vez que para existir precisa se debruçar só naquilo que queremos ver ne outre e nos coloca na posição de esperar algo de outre sem o menor indício de que e outre vai vir a ser tudo isso que se sonha.
Amor dá trabalho, pois demanda intenção diária, negociação de significados para vivências conjuntas, exige muita consciência de coexistência com outre(s) sem anular ninguém para exaltar a relação.
A sua forma de amar exalta o outro real ou a idealização do outro?