Depressão: sentir as dores do mundo e saber de onde vem o sofrimento

A vida não é fácil e tem seus desafios. Conforme falamos na Psicologia Histórico-Cultural, as crises fazem parte  do nosso desenvolvimento, seja no âmbito psíquico, seja no âmbito social.

Todavia, isso não precisava implicar em sofrimento. Infelizmente, não é raro pessoas buscarem a psicoterapia somente no ponto em que a angústia e o sofrimento tomam conta do sujeito e são insuportáveis.

Não dá para falar de sofrimento sem falar de ser humano e seu desenvolvimento. Vamos falar um pouco mais de psiquismo e seu desenvolvimento a partir das bases teóricas da Psicologia Histórico-Cultural.

 

O que adoece não é o sujeito e sim suas relações

Na Psicologia Histórico-Cultural entendemos que vamos nos tornando humanos como espécie diferenciada na relação metabólica ser humano-natureza. Metabólica pois é no na relação que sujeito e natureza reciprocamente se transformam. A categoria que concentra a transformação dos dois é a atividade.

As nossas atividades (trabalho, relações interpessoais, autocuidado) se complexificam, reciprocamente complexificam a formação do nosso psiquismo. Desse modo, não só nossas atividades passam a ser mediadas, contar com meios para chegarem a fins, através de instrumentos, como também o nosso psiquismo é mediado por signos, isto é, o significado da palavra que sintetiza um estágio privilegiado de desenvolvimento e entrecruzamento dos desenvolvimentos do pensamento e da linguagem no nosso sistema psíquico.

Nisso, nossas atividades ganham nova estrutura: são encadeamentos com coerência interna de ações, cujas concatenações se organizam por operações. Por exemplo: estudar é uma atividade que envolve ações de ler, anotar, refletir, conjecturar etc, às quais são mediadas por operações de como coordenações motoras finas no segurar um lápis, o fixar o olho em uma frase, ligar a luz do abajur etc. A atividade não é soma de ações e esta não é soma de operações. É na integração em sua totalidade com uma certa intencionalidade que o operacional se culturaliza.

Essa culturalização que dá tom à intencionalidade de nossas atividades e se organiza em torno de motivos e fins, os porquês e para ques de nossas atividades. O que orienta a fazer o que fazemos na vida, em termos de desenvolvimento psíquico, deveria reciprocamente gerar efeito na vida do sujeito em atividade e para a humanidade direta ou indiretamente. Todavia sabemos que não é assim que funciona.

As relações de produção no capitalismo movidas pelo lucro em detrimento do ser humano que produz o lucro para outrem são alienantes. Ou seja não é o indivíduo solitariamente que é alienado, aliena-se à medida que estamos inserides em relações alienantes. Desde o operário que aperta o parafuso de uma coisa que nem sabe o que é e que nunca vai poder consumir, até a gente entrar sem perceber na rede social no automático para rolar o feed para ver nem se sabe o que; o estar num relacionamento sem nem saber mais porque ficar ou porque sair dele; o buscar uma promoção no trabalho para ter uma vida melhor e essa busca custar cada vez mais emocionalmente; o masturbar-se para buscar o gozo e nem mais se sentir prazer…

A cisão de motivos e fins do que fazemos não é como se fosse um bug no nosso sistema, a cisão é a gente se cindindo à medida que vive uma vida que não faz sentido. Nossas atividades são uma integração do afetivo e do cognitivo. Assim, constatar intelectualmente incoerências no nosso viver é vivido emocionalmente. Dai a importância de diferenciarmos causas e sintomas dos nossos sofrimentos.

Ansiedade, depressão, pânico, etc são sintomas. São as pistas que escondem e revelam as causas de nossas inquietações que não estão dadas como um X do mapa do tesouro para achar e fim. As causas são a nossa história, são o acúmulo de vivência que nos fazem viver mas não necessariamente nos desenvolver. Lidar com coisas complexas da vida exige uma consciência suficientemente complexa e desenvolvida, mas que não necessariamente possui as condições adequadas de mediação do seu desenvolvimento.

Nisso podemos melhor entender alguns dos papeis da psicologia nesse tempo histórico. Psicólogo não se foca só em sofrimento. Mas na atualidade os entraves na promoção de desenvolvimento e aprendizagem raramente de furtam de ser vividos sem sofrimento. E se levaram tantos anos, se não toda uma vida, para haver o acúmulo de condições que ocasionam o cenário atual de sofrimento, não é em um passe de mágica que o cuidado vai resolver tudo. O cuidado também é processual.

Através do desenvolvimento psíquico, isto é, desenvolvimento relacional, que podemos reaver a nossa natureza humana de transformar e sermos transformades em relação com o mundo em prol do nosso desenvolvimento. É pelo desenvolvimento psíquico que alçamos o pensamento abstrato para compreender a realidade para além do dado imediato pelos nossos 5 sentidos e podemos desvelar as conexões internas das coisas da vida que nos atravessam e diferenciar causa e sintoma à medida que alçamos compreensão mais elaborada. Onde termina o eu e começa o outro? O que é a realidade objetiva e o que é a imagem que faço da realidade? A imagem que crio da realidade é fidedigna a ela?  Tendo uma imagem fidedigna da realidade, como transformá-la?

 

O sofrimento não está dentro da gente e sim fora no mundo

Ou seja, o sofrimento, mesmo que vivido pelo indivíduo, não é natural do dele, mas sim constitutivo das relações de produzir e reproduzir a vida nesse tempo histórico.

Nesse sentido, o cuidado do sujeito não passa por atenuar os efeitos de viver numa realidade em que motivos e fins de nossas atividades são cindidos, cindindo o sujeito. Mas sim integrar afetivo-cognitivamente o sujeito em sua realidade para ambos se transformarem reciprocamente.

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