Como tudo começou…
Quando eu estava na faculdade e nos meus primeiros anos atendendo como psicóloga presencialmente eu questionava muito o atendimento online.
Até que veio a pandemia e bateu o famoso “nunca diga que dessa água não bebereis”. E lá estava eu estudando, correndo atrás dos preparativos e me qualificando pra atender no online.
A maior parte das grandes surpresas da minha vida foram coisas que eu não imaginava jamais. Talvez por isso a surpresa. O atendimento online foi um deles, hoje eu amo e não abro mão.
Não é a minha praia ficar tentando convencer qual modalidade é melhor ou pior. Tem psicóloga e paciente para tudo e está tudo certo. Mas eu acho legal falar um pouco mais sobre o online. Afinal já fazem mais de 4 anos que estamos nessa empreitada com muitos aprendizados e impressões que valem ser compartilhados.
Adendo!
Antes de mais nada, o atendimento psicológico online não é para todo mundo. De acordo com o Conselho Federal de Psicologia pessoas em situação de calamidade e vulnerabilidade devem necessariamente ser atendidas no modo presencial, ok?
Para quem pode usufruir do atendimento online, o CFP autoriza que os atendimentos sejam feitos de modo síncrono ou assíncrono por vídeo chamada, áudio chamada, mensagens ou e-mails.
Feitas essas ressalvas, vamos falar sobre algumas dúvidas que percebo serem recorrentes e vou compartilhar meus aprendizados com ela.
1- O vínculo no online é menos real?
Pode ser uma indagação de que o vínculo terapêutico, isto é, da psicóloga com a pessoa atendida, fique a desejar no online, afinal você não está fisicamente de frente a frente com a pessoa que te atende.
Ainda temos muito a desconstruir sobre o que psicólogas fazem. Não trabalhamos com o leitura de mentes, não vamos invadir e acessar coisas escondidas e desconhecidas no psiquismo da pessoa só de bater o olho e tudo o mais.
Em virtude dessas falsas concepções do que psis fazem vai se formando uma ideia de que para atendimento acontecer você precisa estar frente a frente fisicamente com a psicóloga.
Na Psicologia Histórico-Cultural compreendemos que a linguagem e o pensamento possuem função fundamental na construção da nossa personalidade. A qualidade das relações sociais desenvolve e é desenvolvida pelo conteúdo de nossas comunicações.
Se a gente se debruçar na qualidade da relação e não em suas partes isoladas, podemos entender que não se trata do meio pelo qual nos comunicamos com o outro, e sim da qualidade da relação que se estabelece.
Com o desenvolvimento da cultura, aumentam também as possibilidades de terapêutica. Um vínculo presencial ou online pode ser muito promissor ou muito vazio, não depende dele por si, mas como reciprocamente o construímos.
Enfim, vínculos não são mais ou menos reais a depender dos meios isoladamente mas da nossa implicação com estes.
2- O online tem menos compromisso e seriedade por não ser no consultório físico?
É comum também se pensar que o atendimento online vai ser menos sério, afinal você pode fazê-lo no seu quarto, de pijama, com seu pet do lado etc. Enquanto para pessoas que já fizeram ou fazem atendimento presencial existe todo um ritual do dia da consulta de se arrumar, se preparar para sair de casa, no caminho de ida e volta da terapia pensar sobre os conteúdos trabalhados em sessão.
Mais uma vez voltamos ao ponto de focar mais na relação e não nas partes isoladas. Não é o estar em casa, no consultório, na praça em si que vai ditar a qualidade de um atendimento, mas a qualidade da relação que você estabelece com o compromisso. Independente de ser presencial ou online pode haver o descuido, como também o cuidado de se preparar para o encontro e após este.
Quanto saímos de elementos concreto imediatos como a clínica, o quarto, o celular, o divã, etc e alçamos categorias mais elaboradas como o compromisso, a troca, a organização da rotina etc.
Assim, não depende do lugar e sim das pessoas a seriedade com o atendimento.
3- Falta de privacidade no online
É super comum haver o receio de não se ter privacidade com o atendimento online, bem como se ver como prejuízo ao atendimento barulhos do lugar que estamos e a instabilidade na internet.
Retomemos aqui o todo em vez das partes.
A vida é feita de barulho e acontecimentos. Se o atendimento fosse em um consultório presencial você também precisaria se reorganizar em meio a coisas acontecendo: cachorro do vizinho latindo, energia que acaba, criança berrando na sala de espera, consultório pequeno com salas muito próximas tendo que se ter cuidado em fazer silêncio para não atrapalhar outros atendimentos, etc.
O online não é mais qualitativo se filtrar o entorno do sujeito do outro lado da tela, porque para além do encontro terapêutico existe toda uma vida que acontece.
Quanto ao não ter privacidade em casa, isso com certeza é desconfortável e pode ser um problema. Mas, se você não tem sua privacidade combinada e respeitada por 50 min em sua semana quem dirá para outras coisas da sua vida e o quanto isso pode dizer respeito a um modo de viver que causa sofrimento.
A gente costuma associar a privacidade com posses: um quarto grande, um escritório equipado, um carro etc. Essas coisas proporcionam conforto e facilitam a vida de quem as tem. Mas a nossa conversa não é sobre isso.
Privacidade é acima de tudo respeito nas relações. É válido refletirmos que o problema da privacidade não é sobre ser um atendimento online ou presencial, mas sobre termos limites dados e respeitados na vida. Isso, inclusive, pode ser um assunto a ser trabalhado em terapia. Afinal, não se trata problema específico da sessão online e sim da vida da pessoa em vários aspectos e que também atravessa o atendimento.
Ou seja, a privacidade não é uma necessidade privativa da terapia e sim da vida da pessoa atendida.
Finalizando
A gente sabe que o online aumentou na vida a partir da pandemia. E não é o vírus isoladamente que virou tudo de ponta cabeça mas o modo de produção e reprodução da vida nessa sociedade.
Eu não gosto de propagandear o online falando que é melhor porque você faz do conforto de sua casa. Afinal, saúde mental deveria ser sobre ter conforto em todo lugar e não só na casa, além do fato de que ter uma casa não é realidade pra todo mundo.
Não gosto da ideia de propagandear que o online é melhor porque você não pega trânsito e não gasta gasolina, afinal a circulação e o descolamento urbano tinham que ser um direitos básicos e não um critério de escolha de serviços.
Tampouco que é melhor porque você fica em casa confortável da internet, porque não é todo mundo que tem internet e as normativas de roupa e tal não deveriam ser um impedimento pro acesso de um serviço.
Qualquer forma de atendimento tem potencial de ser qualitativa pelo que você leu nesse texto. E qualquer forma de atendimento também é atravessada por problemas sociais, pois ele rege todas as relações do nosso viver.
Enfim, tanto online como presencial podem ser atendimentos incríveis, por isso ambos deveriam ser opção para além das falsas vantagens e desvantagens que não são sobre ele mas sobre o viver nessa sociedade.