Autoconhecimento envolve olharmos para o como se construiu e se expressam o desejo, a fantasia, o nutrir e viver relações de romance, sexuais e afetivas.
Muitas vezes, problemas de saúde mental, questões de autoestima, dentre outras dificuldades, persistem em nossa vida em virtude do tabu de falar abertamente sobre sexualidade e afetos nas relações.
Abaixo, escrevi com carinho alguns textos que atravessam os temas da sexualidade e do viver relacionamentos em relação com a saúde mental.
Culpa de querer ou não querer ter relação sexual e as desigualdades de gênero
Quando falamos de relação sexual estamos levando em conta o desejo de pelo menos duas pessoas. Essa relação vai exigir gerir como considerar cada um dos desejos sem que um lado seja anulado em prol do outro.
Trata-se do desejo elaborado junto e não o desejo de um lado que o outro tem o dever de atender em nome de um suposto amor ou compromisso, bem como urgência de se sentir aceite e desejade.
Quando isso não é entendido, podemos cair no lugar de instrumentalizar relações, confundir o se relacionar com usar o outro. Ou seja, desumaniza-se o outro pra que eu me humanize como ser desejante. E, reciprocamente, o outro lado entende que o lugar do seu prazer se cerceia por proporcionar prazer a outre, algo importante, mas não uma obrigação e diferente de um prazer em que eu me veja como parte que usufrui também.
Nisso, a gente vê marcadores sociais que nunca escapam. Não raro, em relações cisnormativas entre homem e mulher, estas relatam culpa por quererem muita frequência de relação sexual com o receio de serem exageradas ou doidas. Até que ponto foram realizadas nas relações que ocorreram ou só performaram para o gozo do parceiro e não tiveram suas demandas atendidas, ficando em suspenso com o fim de um encontro sexual que nem começou pra elas?
Em relações interraciais, pode-se observar por vezes a queixa de pessoas negras não estarem tão disponíveis quanto se esperaria. É chamada de falta da pessoa o que na verdade seria hiperssexualização racista do corpos negros.
Pessoas amarelas podem por vezes serem vistas pela branquitude como recatadas e impotentes. Ao expressarem erotismos são vistas como promíscuas como se não fossem autorizadas a descumprir com uma hellokittização presa ao ser fofa de acordo com a fantasia do outro.
Esse papo vai longe, e o que era para ser emancipação na realização de nossos prazeres se torna uma culpa que existe pela ausência de responsabilização do lado da relação que impõe os desejos de dominar o outro como única forma que compreende o se humanizar, em vez de entender que a humanização só o é quando vale pra todo mundo da relação.
“ A fila anda” – sobre tratar afetos como pronto atendimento
Frasesinha popular para superar términos, o tal do “a fila anda” nos gera muita reflexão.
Quando vivemos uma relação passamos por diferentes processos à medida de sua transformação. A relação se transforma, nos transformando reciprocamente, possibilitando novas formas de agirmos na realidade. Ou seja, a relação mexe com a nossa relação com o tempo. Sendo humanos, não vamos automatizar viradas de ciclos, mas elaborarmos afetivo-cognitivamente, o que varia de pessoa pra pessoa e nos mobiliza num tempo próprio.
Como você elabora o fim de uma relação? Você se permite viver o luto de um fim e se entender sozinhe/solteire? É na dificuldade de lidar com essas questões que não raro se emenda uma relação na outra, transferindo questões não resolvidas de uma para outra, tentando superar um término com um começo de algo que não diz respeito à vivência anterior, bem como se emaranha afetos diversos em meio ao medo da solidão.
O autoconhecimento nem sempre vai ser algo gostoso. Dá trabalho e toca em pontos que não queremos olhar, como pensar em qual momento estou hoje em relação à minha história, o que tenho e não tenho condições de trazer pra minha vida levando em conta os meus recursos. É duro no imediato se defrontar com essas questões, mas lembre-se que tudo isso humaniza você e o próximo, logo, atravessa o processo de humanização das suas relações 😉
O seu afeto humaniza ou tokeniza o outro?
“Não sou racista, tenho ume namorade negre”, “não sou homofóbico, tenho amigos gays”, “não sou machista, contrato mulheres”. Essas são falas verbalizadas em voz alta, em privado para alguns ou na própria cabeça para provar a si e aos outres uma certa desconstrução.
Em que medida essas posturas de fato são no sentido de humanizar outre diferente de mim ou de me poupar de ser acusade de algo com o qual não quero arcar responsabilidade? Em que medida o meu afeto pelo diferente liberta ou oprime ainda mais?
Quando a aceitação, seja em amizade, relacionamento afetivo, profissional negocia a distribuição dos afetos ela já começou errada. Afeto que é caridoso não é afeto de fato, é perpetuação de relações de poder!
Ter um interesse em alguém pelo papel que a pessoa vai representar na sua vida coloca nessa pessoa um rol de expectativas que alivia a pressão para um e adoece para o outro lado. Este acaba sendo pedagogo de quem não é minoria, se sente obrigade a agradecer pelo espaço de aceitação e todo o afeto é negociado em torno do que a pessoa representa por ser minoria, colocando toda a inteireza do ser em pauta – será que gostam de mim pelo que eu sou ou pelo que a pessoa sente que eu represento no ideal compassivo dela?
Reconhecer esse modelo de relação dói de formas desiguais para cada um dos lados. Dói pra quem achou que já tinha terminado uma desconstrução que não é finita, tampouco tutelada por si próprie. E doi pra quem busca segurança de afeto e se frustra no misto de culpa, baixa autoestima, insegurança e raiva. Por isso é tão importante dar nome a esse tipo de relação para se pensar em outras possibilidades humanizantes.
Liberdade não é libertinagem
Pensar em outras formas de amor que não se prendam aos ditames padrões é algo fundamental para vislumbrar possibilidades de autenticidade sobre: como vivemos a nossa história, o que romper e o que levar adiante, o quão consciente estamos do nosso lugar na história da humanidade.
De um lado, chamar amores fora dos padrões – como relações não-monogâmicas, poliamorosas, amor livre, semi-abertas, etc – de libertinagem mostra um desconhecimento muito grande dessas formas de relação bem como ao que venha a ser a diferença de liberdade e libertinagem.
Liberdade não é eu fazer o que me dá na telha pouco me importando com os sentimentos des outres, rompendo normas por romper. Liberdade é um processo constante de fazer todas individualidades coletivamente se emanciparem, sentindo-se pertencentes. E isso envolve muita conversa, reflexão, debate, crítica, autocrítica. Todo relacionamento deveria passar por isso, independentemente de como se configura – até porque chegar a uma forma de configuração deveria ser um acordo no sentido de plenitude e realização para todes envolvides e não uma amarra inquestionável.
A virgindade é uma construção patriarcal
Costumeiramente ao se falar de virgindade pensamos em corpos com vulva e vagina e perda do hímem, não é?
Diante disso, socializa-se o “tornar-se mulher” de fato à perda desse pedacinho de pele que mais que uma virada de ciclo em si, carrega a ideia do tornar-se mulher estando entregue a um homem cis em uma forma específica de relação sexual falocêntrica.
Esse pensamento é trans-excludente, pois reduz identidades de gênero e genitálias, além de gerar uma lógica restrita da noção de ter sua “primeira vez”.
O que seria uma primeira vez, de fato? A primeira vez fora do ideal cis-hetero normativo? A primeira vez pós transição e/ou pós sair do armário? A primeira vez com a pessoa que se tornou hoje o seu amor? A primeira vez que você sentiu algo pra chamar de seu prazer de verdade? A primeira vez que você mesme se tocou?
Ou seja, ter uma vida sexual não é ter uma única primeira vez que vai dividir nossa linha da vida entre fase virgem e fase “usada”. Vamos passar por muitas primeiras vezes narradas na perspectivas de vivências para chamar de nossas porque estamos em constante movimento e transformação, e o mesmo vale para a consciência dos nossos prazeres!
Afetos entre pessoas com vulva
Termo corrente entre lésbicas, o tal do rebuceteio é o emaranhado de pegações, fiquei com fulana, que depois ficou com ciclana, que é minha ex. Piadas a parte que existem no brejo, é um assunto que dá muito pano para manga.
O tal do emaranhado de afetos não é algo que pertence só à comunidade lésbica, tampouco só aos afetos entre mulheres e outras pessoas com vulva. Em uma sociedade patriarcal, vemos o quanto o corpo de uma mulher acaba sendo tratado como posse por parte de parceiros atuais bem como pelo ex. E entre aqueles que reproduzem a heterocis normatividade acaba-se tendo a brotheragem de “não pegar uma mina que foi sua”, como se ainda se tivesse uma posse que nunca deveria ser concebida.
Falar de rebuceteio, assim, vai pra além das alianças de posse pra se conceber as transições de afetos que não são permanentes, tampouco posse antes (no interesse sem haver algo), no durante a relação e no depois (que foi meu não será de outro).
Entenda-se também que em meio à tanta lesbofobia e bifobia, mulheres e pessoas lesbi acabem se tornando comunidade de amizade e afetos e que seja compreensível que as trocas se dêem nesses ciclos seguros.
Vale frisar que o termo rebuceteio tem raiz cisnormativa, afinal não são todas lésbicas que possuem o respectivo órgão. O termo se ressignificou para além da genitália e abre brecha pra pensar em variações pró inclusão como o travelcro. Ou seja, sapatão, não se limite por entender sua rede de afetos pela cis-normatividade, ressignifique os termos do brejo para além do biológico ;)
Terminar uma relação não é voltar a ser como antes
O fim de uma relação pode ser difícil e envolver dor, tristeza, raiva, confusão. Aprender a viver com alguém não é algo programado e ter que reaprender a viver sem esse alguém pode ser um trabalho doloroso.
Nisso, podemos tentar retomar quem éramos antes dessa pessoa entrar na nossa vida para localizar um ponto de retomada da nossa trajetória, sem ter que continuar de um lugar de perda abrupta que fica como um buraco.
A questão é que o buraco não é algo que deixa de existir quando paro de olhar. É algo doloroso diante da vivacidade de emoções que carecem significações. O que passou não vai voltar a ser como antes, mas é parte de história que vai nos marcar como memória do presente em diante. E compreender como levar essa memória adiante é elaborar algo que deixa de ser um buraco pra se tornar parte consistente de nossa trajetória.
Isso não é fácil e leva tempo. Justamente porque elaborar afetos é o que nos humaniza em cada vivência da nossa história.
Dar e receber prazer são coisas diferentes
Relações de modo geral encerram possibilidades de construir coisas bonitas, pois no construí-las junto a gente se humaniza.
Existe uma linha muito tênue nas trocas de a gente proporcionar e receber coisas boas como alegria, contentamento, acolhimento, carinho e gozo. Um prazer pode ser simultaneamente satisfatório para todo mundo da relação, como também posso ser preenchida por uma onda de prazer ao ver quem estimo sentindo prazer e recebendo esse prazer que proporciono.
Mas é necessário ter cuidado e delinear essa linha tênue. Afinal, é muito comum o dar e o receber serem confundidos no sentido de se apagar o meu prazer entendendo que só posso sentir prazer se é quando eu proporciono ele, mas sem esperar recebê-lo; ou também apagar o prazer de outre, não se concebendo o prazer próprio de outra pessoa pra fora da percepção do meu próprio prazer.
Observe-se marcadores de gênero e raça em pensar quem apaga e é apagade nessas dicotomias na maioria das vezes. Por ai vamos vendo que pessoas mais suscetíveis a saírem com baixa-autoestima, vulneráveis, com sentimentos de insuficiência e insegurança não são assim por terem nascido como tal.
Relações num mundo que se valem de desigualdades marcam nossos afetos na superfície de suas expressões com o que se enraízou na base das construções de nossas relações!
Medo de DR?
Qualquer tipo de relação pode envolver conflitos, dentre os quais, discordâncias, insatisfações, destoâncias de interesses e valores, dentre outras questões que permeiam o âmbito das tais das DRs, o discutir a relação.
Muitas vezes a iminência da DR pode ser vista com preguiça e descaso. Observe-se o quanto um lado manifestar um desconforto da relação ausente para o outro lado traz para este a responsabilização de tratar o que poderia se manter intocável (um lado limpar mais a casa que outro, um ser grosso e estúpido com outro, o sexo não estar satisfatório para um dos lados).
A persistência em não se responsabilizar nem se sensibilizar com demandas de outre pode se expressar enquanto silenciamento, gaslighing (argumentar que outre é dramático e louca). É nítida a marcação de gênero muitas vezes nesses aspectos.
A iminência da DR pode também gerar medo. Afinal, no manejo do conflito posso trazer para a relação algo que não seja da ordem da relação e cobrar envolvimento do outro sem que este deva fazer alguma prestação de contas (não gostar des amigs de outre, não gostar das roupas de outre, querer moldar o jeito de outre, seus valores, etc).
Discutir a relação deve contemplar todas as partes dessa relação, que são sujeitos inteiros. Quando discutir é entendido como brigar, manipular, insistir, estamos lidando com o risco de nem todas as partes estarem inteiras nessa relação. Do contrário, discutir como sentido de dar espaço para a partilha de sentimentos e pensar conjunto nos cuidados que cabem a cada parte numa relação pode mobilizar afeto, pertença e prazer.