Quando falamos de processos de produção de saúde e de adoecimento não podemos perder de vista que por trás de todo sofrimento existe um sujeito.
Mais do que isso, um sujeito com sua história e um emaranhado de especificidades em cima do lugar social que se ocupa. Gênero, raça e classe são categorias fundamentais. Afinal, o processo de produção de certos sofrimentos e o aprendizado de processos de autocuidado determina e é determinado pelas nossas identidades.
Pensando nisso, separei a seguir, uma coletânea de alguns textos levando em conta o impacto de questões patriarcais, machistas e misóginas na saúde mental das mulheres.
Boa leitura!
Não fui grossa, apenas não fui dócil
Na vida de mulheres e outras minorias, não ser dócil é uma aprendizagem dura e violenta.
Há que se diferenciar ser grossa e não ser dócil. Mulheres e outras minorias de gênero são educadas a se comportar de forma recatada, a não questionarem, aa serem submissas, a terem um tom de voz delicado e sereno. Qualquer toque de não docilidade é automaticamente taxado de grosseria, baixaria e falta de educação.
Nisso não só os traquejos sociais são violentamente domesticados, como também passamos a sentir um medo constante de magoar, causar constrangimento, frustrar, gerar desgosto em relação a coisas que nem são nossa responsabilidade. É muita carga em que limites e autocuidado caem por terra em nome de uma servidão trajada de docilidade disciplinada.
Respeito, cuidado e empatia são fundamentais para todas as relações. Mas, do jeito que são transmitidos, tomam formas de ser e agir por meios de consolidar relações de dominação, exploração e opressão no dia a dia nas mais diversas ocasiões.
Você já viu pessoas te cobrando não serem grossas como meio de te exigir docilidade?
Como saber se estou em um relacionamento abusivo
A violência em um relacionamento nem sempre é algo fácil de se identificar e sua ardilosidade a torna ainda mais violenta. Seja relacionamento romântico, sexual, familiar, de amizade, profissional, etc.
Para além das violência física, sexual, moral e patrimonial, temos a violência psicológica. Qualquer relação em que uma pessoa “instrumentaliza” a outra em prol dos seus interesses e em detrimento da soberania de outra é uma forma de violência.
Convencer que você está louca quando faz uma colocação, queixa, expõe um sentimento e até desejo de expressar o seu ser, ir a algum lugar, usar uma roupa específica; apropriar-se de falas suas tal como se fossem do outro; interromper sistematicamente você de modo a te silenciar progressivamente. Relações em que um sujeito exime outre de sua dignidade e humanidade torna o entendimento do sofrimento psíquico de minorias radicalmente histórico e social.
O que adoece para além dos atos de violência em si é a dificuldade de sair de tais relações por inúmeros motivos. Dentre eles, ter-se naturalizado em nossa sociedade essas violências como formas de amor, cuidado, incômodos fúteis, dentre outros modos de tensionar relações de dominação e poder. Não à toa, as pessoas mais vulneráveis são mulheres, LGBTQIAP+ e pessoas racializadas.
Pensar nas vidas que estão mais sucetíveis a serem violadas é pensar que o cuidado da saúde mental de minorias passa por acolher, significar e se orientar diante de um mundo com muitas injustiças a serem superadas.
Não era louco, era machista
Na nossa sociedade as relações de opressão assumem diferentes formas: violência verbal, psicológica, moral, física, etc. Quando buscamos explicações para entender o porquê disso, podemos cair em explicações que só reiteram ainda mais as relações de opressão.
O que quero dizer com isso? Taxar o opressor de louco, menino demais, velho demais, traumatizado e perturbado para justificar atitudes machistas mais beneficia a perpetuação de violências do que a sua ruptura para havermos relações com mais equidade.
Essas falsas justificativas reforçam ainda mais uma lógica moralista e estigmatizante. Como se a opressão fosse um ato fora da curva e quem a cometeu demandasse uma óptica específica para se compreender “a mente do agressor” ou algo do tipo.
As opressões não são elementos fora da curva, são constitutivas desse modo da sociedade capitalista funcionar. As categorias “louco”, “mal”, “traumatizado” “novo demais”, “velho demais” tem significados e papeis próprios na sociedade em que vivemos.
De um lado para mulheres e outras minorias oprimidas essas categorias são usadas para revitimizá-las (“apanhou, mas era novinha e não pensou na roupa que colocou”; “fez barraco, mas também era louca”). De outro, para opressores esses mesmos termos são utilizados para isentá-los da opressão cometida (“ele não assediou de propósito, é novinho demais” ou “já é velho demais pra entender”; “ele violentou fulana, mas coitado, é perturbado e tem uns traumas”).
Entenda-se que a pessoa que comete opressão não é menos humana. Por traz de um ato machismo pode haver um homem cis muito inseguro e essa insegurança deve ser acolhida. O problema é se valer de desigualdades de gênero para resolver questões próprias, tal como a branquitude se valer de estigmatizar pessoas racializadas para contornar os problemas de auto-estima e insegurança.
As determinações podem sempre existir por trás de um opressor que não é menos humano, todavia que se utiliza de meios injustificáveis para resolver suas próprias questões, dai a materialização das desigualdades para resolvermos questões semelhantes, mas com impactos muito diferenciados.
Lembremos que as opressões nunca devem ser vistas isoladamente, e sim dentro de uma relação. Quando fragmentamos o sujeito da relação incorremos ainda mais nos movimentos de individualização de problemas que são sociais.
Mulheres e outras minorias não são escolinha para homens machistas
Ninguém nasce sabendo tudo e sabemos que a forma das relações serem organizadas na nossa sociedade não propicia recursos pra ser fácil a gente entender as relações de opressão e superá-las.
Isso mesmo, opressões não são isoladas às pessoas oprimidas ou opressoras. Elas são relações. Logo, não dá pra a gente fazer uma lista de coisas que pode e não pode; lista do que vai te taxar de opressor e lista do que vai te garantir selo de bom branco/hetero/cis/homem etc.
A própria ideia de ter um manual pronto pra isso tudo é uma postura que isenta de entender que as opressões se produzem relacionalmente à luz de um tempo histórico com suas determinações sociais. Quando a gente demanda algo pronto, a gente se isenta de se implicar como sujeito para pensar, reconhecer e entender caminhos de superação dentro das possibilidades individuais e o que vai ir pra além disso.
Falas como “me ensina, quero aprender a não ser racista”, “você que é mulher, me explica, isso é machismo?”, “me explica porque eu tenho que te chamar por esse pronome, não entendo”, precisam ser esmiuçadas. Não tem nada de errado querer aprender, aliás isso é muito bom. Mas porque são falas que objetivam relações de opressão?
Colocar demandas de aprender para o outro coloca a si mesme numa postura passiva, como se a aprendizagem fosse unilateral e a gente fosse um receptáculo de receber conhecimento que caberia aos oprimides transmitir de forma falsamente superior.
Como estamos falando de relações, se de um lado existe na máxima tentativa de ganhar validação mexendo o mínimo de pauzinhos em si, de outro pra quem é oprimide existe a insistente cobrança de precisar passar por situações de ter que reviver opressões explicando o porquê de o serem como se tivessem o dever de sair ensinando para terem o direito de serem tratades como serem humanos livres de opressão.
A arte de lidar com o medo de uma hora estar sendo vacilona e no outro de estar fazendo papel de trouxa
Precisar remarcar um compromisso, dizer que não estará disponível para uma reunião, dizer um “não”, ter atrasado um prazo por sobrecarga, estar com dificuldades de realizar uma tarefa e se culpar por precisar de ajuda…
Assimilar todas essas coisas pode ser motivo de muito sofrimento. Apropriar-se do se colocar como um ser humano limitado (sim, dar limites envolve entender que somos limitades) pode gerar muito medo de sermos vacilonas, de só pensarmos no nosso e estarmos falhando com os outros. Em contrapartida, estar sempre tentando contornar esse medo faz nos sentirmos trouxas. Como lidar?
Relações humanas não deveriam ser sobre antagonismos para bem-estar. Um ter que se sacrificar para outro ficar bem. Obviamente vez ou outra temos que abrir mão de algo, abdicar de coisas, isso faz parte. Mas quando se torna uma constante unilateral, deixamos de falar de relações humanizantes, desenvolvedoras, logo de pensar em desigualdades.
Afinal, quem mais duramente precisou aprender que seus limites vão incomodar, vão ser associados com não ser merecedora/e de estar em certos espaços tem atributos de gênero, sexualidade e raça.
Eu fico sempre perplexa, porém, infelizmente, nunca surpresa, em notar que as pessoas ao meu redor que mais se explicam por coisas que não precisavam são mulheres, pessoas negras, trans dentre outras minorias. Quando situações que de fato exigiriam uma devida explicação levando em conta minha ação pode afetar outras pessoas ao meu redor nem sequer são problematizadas entre outros.
O marido que chega em casa tarde sem ter avisado a esposa esperando com o jantar à mesa e esta ser taxada de louca e ciumenta; a profissional racializada que precisa sair mais cedo do trabalho para ir ao médico e isso ser visto como “corpo mole”; a pessoa trans que corrige o pronome e é taxada de arrogante e precisa acolher o opressor para poder explicar o seu devido pronome.
Você já problematizou o se explicar muitos aos outros?
O direito de descansar!
Qual o lugar do descanso e do ócio, nas nossas vidas? Para muitas pessoas descanso se tornou sinônimo de inutilidade. Culpa por poder estar sendo mais produtivo no emprego que já tem, desespero de sair de uma situação de marasmo e incerteza dada por falta de estabilidade…
Ou seja, a maioria de nós não sabe e talvez nunca soube o que é descanso. O que chega mais perto de ser descanso é o revirar a cabeça no travesseiro repassando tudo o que fiz de errado no dia que passou e tudo o que vou ter que fazer amanhã; é estar esperando a condução chegar ouvindo a musiquinha no fone, mas ao mesmo tempo não tão entretida pra não perder o busão/uber; é dar uma pescada enquanto o bebê dorme, enquanto o companheire não volta do trabalho, é deitar no sofá e nem entender porque estar vendo aquele programa de TV ou nem ter energia mais pra escolher qual série do streaming ver porque não resta mais nada pra produzir quando o próprio descansar exige cuidado para o qual não resta paciência e energia.
Não se descansa verdadeiramente de uma vida quando a nossa própria vida não propicia uma estrutura de relações que não permita nada a não ser calejar. No final das coisas, me parece que a gente não sabe o que seria descansar, trabalhar, estabelecer trocas, amar quando todas nossas relações são necessariamente atravessadas por se esvaziar compulsoriamente.
Mas isso não é pra fazer a gente sofrer e se jogar pra desesperança. Saúde mental não passa por mascarar a realidade e forjar uma good vibes fubanga, tampouco cair com a cara dura na frieza da realidade. Saúde mental é elaborar a realidade em seu movimento, que é movimento nas nossas relaçõees que transforma a nossa consciência.
A autocobrança de ser excepcional
Existe um perigo muito grande em se confundir autoestima com se achar excepcional, acima da média e coisas do tipo.
Muitas pessoas adultas, pais de crianças etc acabam levando a mal terem cortadas as explicações que dão a si mesmos que de que eu/meu filhe tem esses problemas porque é inteligente demais, muito evoluído pra idade, ou até à frente da sua geração ou tempo histórico. E bom, se você vive nesse momento atual, sinto dizer, mas ele é o seu tempo sim.
Uma autoestima e autoimagem que se pautam nessas comparações erradas facilmente se abalam numa corrida infindável. Tenta-se suprir coisas mais uma vez na lógica competitiva, comparativa de encontrar o inatingível ser acima da média como um recurso falho de se amar um pouquinho mais.
Eu gosto de pensar autoestima, autoconhecimento e autocuidado como conceitos entrelaçados. Temos que nos conhecer para organizar as formas de estimarmos a nós mesmes. Autoestima que coloca você acima dos outros pra se gostar não é autoestima, é autocentramento frágil.
Autoestima é se entender situade em relações com outres na realidade em que vivemos. À medida que atualizo à minha autoimagem com a imagem que faço da realidade, atualizo as melhores formas dentro de minhas condições de me enxergar de um jeito que eu me reconheça e goste de quem sou nas relações em que me insiro. Não seria a autoestima um processo contínuo de consciência de si nas relações que cuidamos para nos cuidar junto?
Como você pensa as ideias de autocuidado, autoconhecimento e autoestima? Suas formas de pensar esses conceitos te fazem bem ou mal no final das contas?