Mulheres lésbicas, bissexuais, pansexuais para além da opressão machista do patriarcado, são vítimas de violências decorrentes de exercerem o direito de amarem outras mulheres.
Nem toda mulher que ama mulheres vai ter questões de saúde mental relacionadas à sexualidade, mas toda mulher que ama mulheres está suscetível a ser oprimida e precisa estar constantemente atenta para se acolher e se olhar com carinho.
Abaixo, compartilho algumas reflexões que podem atravessar ou não a sua vivência se você é uma mulher que ama mulheres!
A saúde mental de mulheres que amam mulheres
Uma violência contra um grupo ganhar um nome próprio é visto por aqueles que não se interessam em compreender sua gravidade como uma frescura. Nisso vemos que há muito preconceito a ser desconstruído e muita elaboração da realidade em falta.
Em um mundo em que quase todes precisam trabalhar pra bancar condições de vida cuja mínima segurança se torna alvo de disputa e competição, a gente pode ver entre nós mesmes a segmentação de diferentes grupos que vão ficando cada vez mais pra trás numa corrida que nem deveria existir e na qual todes nós são perdedores, mas alguns além de perderem a corrida deixam de conquistar a própria legitimidade de existir, falsamente prometida numa corrida que foi criada para que certas pessoas sempre percam.
A lesbofobia, a bifobia e a panfobia precisam de nome próprio, não porque lésbicas, bis e pans se orgulhem de ter uma violência para chamarem de sua, mas justamente porque dar o devido nome à violência encerra um histórico de relações em que ser uma mulher que ama outras mulheres é algo que incomoda quem não as quer por aqui, e menos ainda se for uma mulher que ama mulheres trabalhadora trans/travesti, racializada e pobre.
Como não adoecer nessa realidade? Seria uma hipocrisia tamanha não resgatar todos esses determinantes ao se falar da saúde mental de mulheres que amam mulheres. Precisamos dar nome à violência que cada identidade sofre para tirar da ordem do dia preconceitos que são corriqueiros a quem não se interessa em romper com a LGBTfobia do mundo.
A transfobia entre mulheres que amam mulheres
Quando um grupo minoritário precisa construir sua identidade numa sociedade que não o aceita e que reproduz inúmeras violências não é raro que muitas dessas violências acabem se reproduzindo no interior dos próprios grupos, sorrateiramente desarticulando sua totalidade e minando as pessoas mais vulneráveis socialmente.
Nisso, mulheres cis que amam mulheres que reproduzem cisnormatividade precisam ter um esforço de autocrítica em reconhecer a discriminação e exclusão mulheres trans e travestis, bem como incluir homens trans e não-bináries com vulva nas rodas de conversa sobre saúde ginecológica.
Isso não vai enfraquecer os movimentos lésbico, bi e pan muito pelo contrário, reconhecer nosses pares em lutas e opressões é o que quem nos oprime menos quer. Você mulher cis não será menos mulher por entender o alcance para além de seu corpo e existência das possibilidades de ser quem é, de haver outras identidades de gênero para pessoas com vulva.
Isso é muito importante, levando em conta inclusive que o apagamento sistemático no mundo ao ser repetido em nossas comunidades pode causar um sofrimento psíquico imenso do qual não podemos nos eximir de nossa responsabilidade!
O racismo nas relações entre mulheres
Historicamente os processos de dominação colonial e imperialista firmaram concepções racistas e preconceituosas de pureza racial, eugenistas, apontando corpos brancos como o estatuto de humanidade.
Consequentemente corpos fora da soberania da branquitude precisaram e continuam precisando negociar a sua humanidade, o que por si só já é uma desumanização tamanha.
E em se tratando de minorias, como mulheres que amam mulheres, ter sua humanidade legitimada já é algo difícil num mundo que preza pela manutenção da família cis-hetero dominante. Reconhecer vidas e amores sáficos já é algo que causa desconforto pra aqueles que se beneficiam do mundo funcionando como tal. Legitimar mulheres racializadas que amam mulheres parece ser a potencialização desse desconforto, dada tamanha ruptura com as imposições de ideal de ser humano tão distantes da maioria da humanidade.
Quando não conscientes dos processos históricos que solapam nossa legitimidade em sermos quem somos, o sofrimento pode acabar se expressando com autocobranças rígidas, raiva, insegurança, baixa-autoestima, desesperança.
A questão é que se descobrir como parte da humanidade tal como somos exige transformar a humanidade tal como tem existido. Requalificarmos os nossos afetos e as multiplicidades de ser mulher que ama mulheres passa por vislumbrar qual projeto de humanidade é o mais humanizador possível.
A fetichização de mulheres que amam mulheres
Quando eu enxergo o outro como uma fantasia pautada em ideiais de dominação, desconsiderando que não cabe a esse outro corresponder a essas fantasias, tampouco é humanizante sê-las, temos a fetichização como um problema. E tristemente, mulheres que amam mulheres têm um acúmulo de vivências nesse quesito.
A fetichização não se limita ao retrato que hiperboliza a erotização objetificante. Mas esta coexiste com a desautorização de expressão de humanidade e convencimento descarado de que se aceita a existência dessa vítima, como se o fetiche fosse a única condição possível de se reconhecer sua existência.
Por exemplo, não se aceita mulheres que amam mulheres demonstrarem afeto publicamente, assumirem a maternidade, ocuparem imóveis sem serem vistas como pessoas que desvalorizam o bairro/prédio, etc. Mas nos sites de pornografia existe sessões de pornô sáfico, não produzido com mulheres, por mulheres e para mulheres que reconhecem sua humanidade – já que estas produções são atrativas à medida que objetificam, distanciando qualquer forma de erotismo do que realmente seria uma demonstração real de afeto entre mulheres.
Nisso, acaba-se disseminando a ideia de que se você, mulher que ama mulheres, é aberta quanto ao seu ser, sua sexualidade, seu desejo, amor etc, você está sendo conivente com sua fetichização. Violento, né?
Que possamos estar atentes para nossas gestões de afetos e para repreender eventuais violências que a gente veja por ai.
A reprodução da hetero-cis-normatividade entre mulheres que amam mulheres
A gente não nasce pronta. Vamos aprendendo a falar, estudar, dançar, amar, enxergar a nós mesmes a partir de todo um arcabouço cultural que já existia antes de nascermos.
E a nossa performance afetivo e erótica não foge disso. O problema é que o que se normatiza é o ensino e a transmissão se referências heterocisnormativas. Não tem nada de errado em ser hetero e cis (tenho até amigos que são rs) mas temos que reconhecer o quanto instituir isso tudo como a única possibilidade foi a custo de muita violência que aos próprios hetero-cis gera prejuízos.
Ciúmes e controle como forma de amor, imposição da monogamia como uma questão de boa moral, a necessidade de estar em um relacionamento para provar que se andou na vida, castidade compulsória, pegar geral para ser bem viste como alguém descolade, etc. Quanta coisa a gente internaliza e reproduz desavisades da violência detrás!
Temos um desafio muito grande em amarmos, sermos e ao mesmo tempo construirmos novos referenciais emancipadores. E não seria abraçar isso uma expressão do orgulho de ser e amar também?
O desejo de ter uma namoradinha
O processo de apaixonamento, desejar intimidade, sentir-se a melhor versão de si com alguém e sonhar com uma vida a duas é algo lindo.
Lindo porque afetos envolvem a construção diária de motivos pra dar sentido ao querer estar junta de quem se ama e mais lindo ainda quando não é uma alternativa, para que esse amor exista, uma resistência a quaisquer intolerâncias.
Nisso a gente tem que estar espertas pra processos de rejeição, solidão e insegurança que vão se tecendo na nossa história de interações que nos invalidam e colocam como alternativa para superar isso tudo o encontrar uma namoradinha. O que para muitas mulheres que amam mulheres implica em reconstruir uma família depois de rejeitada na família anterior, entender a validade do próprio ser aos olhos do amor de outra e não ser a única solteira na roda de amigues.
Acaba-se nisso tudo se perdendo de vista que pra um relacionamento acontecer pelo menos duas pessoas devem existir inteiras e que desejos diversos pra além de namorar vão todos se emaranhando, colocando na relação e na(s) companheira(s) cobranças e expectativas pra além de sua alçada, bem como se tem o risco de anular a si mesma pela outra, algo triste, mas infelizmente nem um pouco surpreendente quando se aprende em toda uma vida a ser tratada como anulável.
A gente luta tanto pra existir e ter nosso direito de amar que a gente esquece isso tudo necessariamente implica na qualidade do viver e amar alguém e no movimento e transformação contínuo das nossas vivências. Vincular-se a alguém exige que você também seja alguém inteira. Construir expectativas para um relacionamento, assim, presume se colocar com sua inteireza nas trocas com a inteireza de outra pessoa.
O jogo de poder nas relações sáficas
A gente pode querer proteger e zelar nossas relações significativas. Temos medo de perder quem amamos e por mais ingênuo que pareça, sonhamos muitas vezes com o viver juntas para sempre. Quem nunca?
Isso tudo não é errado. Agora projetar no relacionamento expectativas de suprir traumas passados de abandonos, rejeições, traições e preconceitos mais desgastam do que nutrem a relação, não acha?
Estar numa relação não hetera e sem homem não implica necessariamente em não haver a reprodução de elementos da heterocisnormatividade, tampouco de comportamentos de controle e agressividade costumeiramente vistos em homens cis hetero machistas. Não significa que você, mulher, esteja sendo machista, mas que modelos adoecedores de se relacionar são tão latentes que a gente não se livra deles facilmente.
Estar em relação deveria exigir um cuidado contínuo de olhar para meus atos e de próxime(s) pra entender como isso tudo qualifica a relação em que ambas se implicam reciprocamente em construir.
E quando todas as minhas amigas são amigas da minha namorada?
É muito recorrente a gente ver o quanto com o passar de um relacionamento vínculos de amizade deixam de ser só de uma pessoa pra serem do casal. Isso não é errado e é legal que as partilhas se expressem na sociabilidade e nas nossas redes de apoio.
Todavia, a partir do momento em que minha vida passa só a girar em torno da minha relação e a se focar em minha companheira, perco de vista as possibilidades múltiplas de desenvolvimento e humanização do meu ser. O que era pra ser motivo de felicidade na vida a duas se torna elemento limitante.
Nisso, muitas mulheres que amam mulheres acabam na própria relação se sentindo esvaziadas de sentido de viver, esvaídas de uma identidade própria e sem perspectiva de pensar na vida pra além de suas relações. E em casos de término de relação, o que muitas vezes já é um luto a ser trabalhado, fica ainda mais sofrido com a perda de toda uma vida e de amizades junto da relação.
Você não precisa dividir na régua com sua namorada as amizades, mas já pensou na reciprocidade entre junteza/intimidade e integridade/autonomia no nosso viver?
Ser apresentada como a amiga
Quando você, mulher, está vivendo um relacionamento de namoro/casamento/etc com outra mulher pode acontecer de haver o receio de assumir publicamente a relação diante dos inúmeros riscos que a intolerância traz bem como eu me sentir muito frustrada com minha(s) companheira(s) não bancar assumir publicamente a relação comigo e eu me sentir de volta ao armário.
Ambos os sentimentos são válidos, mas conciliá-los em um relacionamento é muito difícil. O ser mulher que ama mulheres exige tratar na relação o como cada uma lida com assumir a sexualidade, encarar o julgamento alheio e o quanto cada uma está em processo de saída do armário ou não. Essas são coisas que muitas pessoas nem sequer imaginam que são pautas de alguns relacionamentos.
Ter que trazer pra discussão uma coisa tão horrível como o preconceito quando se vive um amor tão lindo pode parecer absurdo, como se fosse estragar todo o clima gostoso, mas o risco de intolerância, rejeição etc sempre está lá a gente querendo ver ou não.
As coisas não eram pra ser assim e a gente tem muito chão pela frente. Mas se queremos estar vivas e viver bem a gente precisa olhar com cuidado para as pessoas por quem a gente se apaixona. E isso passa por conhecer o como a pessoa lida com o expressar publicamente sua sexualidade para saber se o jeito dela e o meu podem caminhar juntos numa relação para ninguém se iludir.
Nisso, a gente acaba perdendo de vista coisas básicas. A gente não pode culpar a companheira por ter estragado a relação por não bancá-la como você. A culpa disso tudo não é de quem a gente gosta, mas da intolerância que coloca a gente pra lidar com conflitos que são da realidade e que atravessam nossos relacionamentos.
Quando a minha felicidade parece incomodar os outros
Orgulhar-se de si mesma, entendendo que não tem nada de errado em quer quem você é e não ter medo de viver sendo você mesma, é incrível. Mas pode acontecer de pessoas ficarem incomodadas, e às vezes até mesmo afrontadas com a sua felicidade. Isso pode causar um misto de insegurança e revolta, né?
A gente acaba aprendendo que resistência é confrontar, apesar dos desconforto do outro, é extravasar tudo o que querem que a gente esconda bem no fundo do armário. E pode ser tudo isso com certeza. Mas às vezes, quando todas minhas ações vão se balizando pela possível reação deste outro, seja pra se conter ou afrontar, justamente quem não deveria se torna o parâmetro do meu performar.
A gente não pode esperar que o outro consinta ou engula a nossa felicidade pra ser feliz de fato. E muitas vezes orgulho pode ser isso também, deixar que o outro lide com um desconforto que a vida inteira aprendi que era meu, mas não é.
Construindo afetos entre mulheres
O afeto nos relacionamentos entre mulheres não é uma ser o homem e a outra a mulher da relação. Não é duas amigas brincando de fazer carinho. Não é fetiche e performance para os outros. Não é vergonha, anormalidade, aberração. Não é falta de ter achado o homem certo. Não é falta de surra nem de exemplo de “feminilidade” padrão.
A gente vai aprendendo a definir o amor entre mulheres sabendo a muito custo o que ele não é. Mas as coisas são a negação do seu oposto e a superação dessa negação na síntese de algo novo que não existia antes.
É por isso que é somente vivendo os afetos que são nossos que a gente vai podendo aprender a definir as coisas para além do que elas não são.
Entender o que um afeto entre mulheres pode ser é um aprendizado para vida, já que a gente tem que aprender a ser quem é de verdade na marra. E assim as próximas mulheres que amam mulheres que virão poderão ter novos referenciais que partam de sínteses e não de antíteses que travam nas relações.
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